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Writer's pictureJosé Prado

Graça é seu nome

Nascida na República Democrática do Congo, antes que pudesse andar já teve que correr das bombas, atravessando florestas e rios com seus pais. Viveu pouco em Angola. Aprendeu português. Era feliz ali, mas a perseguição a fez cruzar um enorme oceano até chegar ao Brasil, com seus pais e uma irmã. Outros dois, gêmeos, um pouco mais novos do que ela, seus melhores amigos e companheiros, ficaram com os tios em Angola. Não havia dinheiro pras passagens de todos.


Eu conheci a Graça na praça da Sé, em São Paulo, numa gelada noite de inverno. Chamou-me a atenção um casal com duas meninas pequenas vestindo roupinhas leves, ali, na rua. Aproximei-me e perguntei de onde eram. – Somos de Angola (não me contaram sua real origem de início). Por que estão na rua, onde moram? – Fomos assaltados e expulsos de onde morávamos. Soube depois que moravam numa invasão, ali perto, no centro, com dezenas de outras famílias, a maioria estrangeiros explorados por um movimento

social brasileiro.


Levei-os pra casa. Ofereci abrigo, agasalhos, alimento e, claro, brinquedos… Graça se destacava. Gostava de cantar, era muito esperta e faladeira e cuidava de sua irmã menor com zelo e carinho. Os dias se passaram e percebemos uma tristeza na Graça que se negava a ir embora. Buscando a causa soubemos. Ela não se conformava em ter deixado seus dois irmãos pra trás. Junto com seu pai (que era pastor), Graça orava todo dia pra que pudesse ter de volta seus dois irmãos… O Eterno, que ouve atentamente a oração

dos pequeninos, concedeu esta benção à menina. Com o apoio de muita gente boa de D’us, alguns meses depois a família foi reunida novamente.


Graça estava feliz, finalmente. Ia pra escola. Fazia amizades. Cantava com seus irmãos no louvor da igreja. Um dia, porém, seu pai foi atacado a facadas quando ia trabalhar. Não foi roubo, não levaram nada. Foi intimidação. Ódio. Xenofobia. Socorrido a tempo, sobreviveu. Fico aqui pensando na reação da Graça… ter seu pai atacado, quase morto, aqui no Brasil…

Da última vez que falamos, o pai da Graça me pediu ajuda pra ir pro Canadá. Estava diferente. Ele que era sempre gentil e amoroso, estava amargo. Depressivo, desiludido, desesperançado. Não queria mais viver no Brasil. Tentei ajudar como pude… Tempos depois fui surpreendido pela notícia que a Graça, seus pais e irmãos estavam num centro de imigrantes na América Central. Até onde sei estão, como milhares de outros, pelo caminho…


Não sei o que pensar nem dizer. Queria ter feito mais, alertado, insistido… Tampouco sei o que fazer. Mas oro. Neste 12 de outubro oro pela Graça e sua querida família que tive o privilégio de servir e amar por tão pouco tempo… Oro pra que minha vida faça diferença e seja benção. Senão mais pra ela, pra outros, outras Graças… Que a frieza, a desesperança e a conformação não me contaminem. Quero poder continuar a ser capaz de chorar e a me inquietar por estes pequeninos. Hoje eu lembro da Graça e oro. Senhor, alcança-a…Dos muitos milhões de refugiados e deslocados à força no mundo, metade é criança! Dos milhões explorados pelas redes criminosas do trabalho escravo e exploração sexual, grande parte são crianças.


Dos muitos e muitos milhões que padecem a fome e a desnutrição aguda, muitos são crianças. Das incontáveis vítimas da violência doméstica, do tráfico de drogas, das guerras, muitos são crianças. Há crianças neste momento presas em centros de detenção de estrangeiros, sozinhas, incomunicáveis, por tentarem encontrar seus pais que estão em outro país. Há também crianças nos barcos à deriva no Mediterrâneo, impedidos de aportar nos países europeus. Há muitas crianças agora nas caçambas dos caminhões atravessando o deserto do Saara, fugindo pra tentar salvar a vida. Escondidos dentro de contêineres, no porta malas de carros… Há milhares de crianças crescendo em barracas em campos de refugiados. Sob o sol escaldante ou sob o frio, a chuva e a lama. Crescem sem horizontes, sem nem mesmo documento com seu nome. Há crianças presas num minúsculo quarto, sem poder sair um momento sequer, brincar, nem mesmo falar alto ou gargalhar, porque correm o risco de serem denunciadas e presas como ilegais.


Eu já os encontrei lá. Posso descrevê-los. Vi seu olhar assustado… Nos campos de refúgio no Líbano e no Timor Leste. Na prisão para estrangeiros e nos minúsculos quartos em Bangkok. Sim, eu os encontrei catando latinhas nas ruas Grécia pra ajudar no sustento de suas famílias. Já as vi ali, adolescentes, embarcando (sendo traficadas) sozinhas, nos aeroportos do Oriente Médio. Eu os encontrei nas praças na Turquia. Nos guetos e nas palafitas na Indonésia. Nas barracas nas ruas e nos abrigos superlotados em Boa

Vista. Naquele porão em Pacaraima. Na ruas da cracolândia…

Eu os encontrei. E pra minha dor, só agora vejo.

Como não entendi antes?

Como não percebi que eras tu ali, meu Senhor?!

Ó Pai, meu Pai, Pai Nosso…

Perdoa-nos. Perdoa-me.

Fortalece as minhas mãos. Dá-me braços mais longos, pernas mais

fortes, pés inabaláveis.

Dá-me a benção de erguer esta casa grande e espaçosa (chamada

Abuna) com um enorme e lindo quintal, uma grande e farta mesa…

Que ela seja grande o suficiente pra acolher muitos dos teus

pequeninos que agora estão lá… com fome, com frio, com medo…

Senhor, dá-me esta graça.

Paizinho querido, lembra-te da Graça!


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